Torniquete: ele pode ser usado por qualquer pessoa?
Texto originalmente publicado por Carlos Felipe dos Santos em 25/fev/23.
Disponível em https://medium.com/me/stats/post/9765460cd7e9
Tempo de leitura: 5 min.
Quando falamos em controle de hemorragias, nos vem à mente um tema que causou — e continua causando — muita polêmica: o uso de torniquetes de extremidades: dispositivo indicado para sangramentos não controlados com pressão direta em membros superiores e inferiores. Mas, mais do que entender se ele é ou não benéfico ou recomendado, precisamos saber: ele pode ser usado por leigos, além dos profissionais de saúde e resgate?
Antes de responder esta pergunta, vamos falar sobre o tecido sanguíneo e sua importância.
O sangue é um fluído composto por uma série de células e substâncias. Ele é divido em duas partes: uma sólida, onde estão as células de defesa, glóbulos vermelhos e plaquetas, e uma líquida, que contêm substâncias como imunoglobulinas (anticorpos), fatores de coagulação, metabólitos, água e outras mais.
Dentre as diversas células que compõe os elementos figurados, destacam-se os glóbulos vermelhos, também chamado de eritrócitos ou hemácias. Eles contém uma proteína chamada hemoglobina, onde as moléculas de oxigênio que inalamos se ligam a elas no pulmão e são transportadas para os demais tecidos do corpo humano, permitindo, assim, que o nosso corpo possa produzir energia (metabolismo aeróbio).
Quando ocorre a lesão de um determinado vaso sanguíneo, há o extravasamento de sangue, o qual damos o nome de hemorragia. Elas podem ser decorrentes de um trauma, e são classificas em interna (quando a perda de sangue se dá dentro das cavidades do nosso organismo), e externa (quando ocorre para fora das cavidades e, nesse caso, é visível). Podem ser classificadas, ainda, quanto ao tipo de vaso lesionado: capilar, venosa ou arterial.
Cada gota de sangue é extremamente importante, afinal, as células transportadoras de oxigênio são perdidas e, com isso, o paciente pode desenvolver um quadro que chamamos de choque hipovolêmico do tipo hemorrágico — estado de hipoperfusão celular generalizado pela perda de sangue: temos oxigênio chegando ao pulmão, mas não há hemácias suficientes para levar esta importante molécula onde ela precisa chegar e, então, começamos a morrer. Além disso, devido ao baixo volume de sangue circulando, o coração perde a capacidade de bombear o sangue, parando de funcionar em poucos minutos.
O nosso objetivo ao atender uma vítima, é estabilizá-la, ou seja: corrigir os problemas encontrados e permitir que ela continue produzindo energia, ou seja, garantir que o oxigênio chegue até os pulmões e seja transportado pelo sangue. Por isso que os protocolos de atendimento indicam, como primeira etapa, a identificação e correção de grandes hemorragias.
Existem três técnicas básicas para estancar uma perda de sangue: 1) compressão direta; 2) preenchimento de feridas/curativo compressivo; e 3) aplicação de torniquete. Algumas pessoas citam a elevação do membro acometido pela hemorragia como mais uma manobra, mas não há estudos que comprovem sua eficácia. Ademais, uma hemorragia proveniente de um vaso arterial tem como característica o extravasamento de sangue em jatos, o que torna esta manobra inútil. Não podemos esquecer, também, que o membro pode estar fraturado.
A compressão direta pode ser realizada com as mãos, e, assim que possível, devem ser utilizadas gazes impregnadas com agentes hemostáticos e bandagens elásticas para promover a coagulação sanguínea e sua contenção. Na sua ausência, gazes simples podem ser utilizadas, devendo a compressão ser exercida por um tempo maior.
Uma vez que a compressão direta não foi eficaz para o controle da hemorragia ou há uma amputação de um membro inferior ou superior, o que pode ser feito? Aplicar o torniquete de extremidades!
Havia uma certa preocupação do torniquete ser prejudicial à vítima e não trazer nenhum benefício, mas nenhuma evidência disto foi publicada. Pelo contrário, os resultados de estudos datados a partir da década de 2010 concluíram que o sucesso no controle da hemorragia com a aplicação do mesmo é de 80%. Quando aplicados antes da vítima entrar em choque, a sobrevivência foi de 96%. Dados militares dão conta que ele pode salvar 7 de cada 100 mortes em combate.
Comprovada a sua eficácia, vamos à pergunta: torniquetes podem ser usados por leigos?
No ano de 2015, nos EUA, após uma série de encontros entre autoridades da área médica e de segurança, um programa de capacitação para controle de hemorragias foi implementado no país. O Comitê Conjunto para Criar uma Política Nacional para Melhorar a Sobrevivência de Acidentes Intencionais, cujas atividades se iniciaram em abril de 2013. entendeu que eventos com atiradores ativos com uma grande quantidade de baixas são uma realidade no país, e que as técnicas utilizadas há décadas para controle de hemorragias (entre elas, o uso de torniquetes) é a melhor e mais rápida forma de controlar um sangramento, e que ninguém deve morrer de hemorragia descontrolada, já que é uma morte evitável. Para isso, incentivam que espectadores, vítimas ilesas ou minimamente feridas devem atuar como socorristas para maximizar o número de sobreviventes.
Esse programa possui um algoritmo bem claro, que é ensinado para leigos e profissionais de saúde e resgate: tão logo esteja seguro, aplique pressão direta e, uma vez que um kit de primeiros socorros esteja disponível, faça o preenchimento da ferida ou, se a lesão for em braços ou pernas, aplique um torniquete.
Fica claro, dado os riscos que uma perda maciça de sangue traz para uma vítima, de que o torniquete é, portanto, um procedimento importante e que deve ser empregado por todo e qualquer cidadão que tenha o mínimo de treinamento para aplicá-lo. Logo, além do treinamento teórico, o treinamento das habilidades práticas é importante para que se tenha agilidade e segurança no uso do equipamento.