Restrição de Movimentos da Coluna: passou da hora de se atualizar!

Texto originalmente publicado por Carlos Felipe dos Santos em 23/jun/24.
Disponível em https://medium.com/p/2c236397422f
Tempo de leitura: 8 min.

Durante muito tempo fomos ensinados que toda e qualquer vítima de trauma, independentemente da cinemática, deveria ser protocolada, ou seja: ser colocada em uma prancha longa, receber um colar cervical e bloqueadores laterais de cabeça e tê-los retirados apenas após avaliação médica. A justificativa é que “não temos visão de raio-x” para determinar se uma vítima possui ou não alguma lesão na coluna.

Parece até engraçado, mas se você ainda faz isso para toda vítima de trauma, saiba que pode estar contribuindo para a piora do estado geral dela.

O uso indiscriminado de colar cervical e prancha rígida em vítimas de trauma pode resultar em diversas complicações e, por isso, um movimento de conscientização e atualização acerca das melhores práticas no manejo de vítimas de trauma tem se difundido em todo o mundo e, aos poucos, vem sendo introduzido nos serviços de atendimento pré hospitalar do Brasil.

Colar cervical usado de maneira indiscriminada pode prejudicar estado geral da vítima. Imagem: canva. 

Trauma não é sinônimo de lesão na coluna

Para falarmos sobre RMC — Restrição de Movimentos da Coluna, é preciso entender, antes, que para uma vítima ter lesão medular, é necessário que ela tenha sofrido um impacto com uma carga de energia extremamente alta. Para se ter uma ideia do quão raro isso pode ser, estima-se que há uma incidência de apenas 12 lesões cervicais para cada 100 mil habitantes/ano.

Além disso, é necessário compreender que a aplicação desnecessária de um colar cervical pode resultar em complicações indesejáveis que pioram o estado da vítima, como:

- Desconforto;

- Aumento da pressão intracraniana;

- Lesão por pressão devido o contato prolongado com o colar;

- Dificuldade no manejo da via aérea;

- Aumento do risco de broncoaspiração;

- Dificuldade de drenagem sanguínea do cérebro;

- Entre outras.

Um estudo publicado em 1998, conduzido por Hauswald et al. corroborou tal fato: os autores analisaram 554 prontuários de vítimas de trauma atendidas em hospitais universitários — 120 em uma unidade da Universidade da Malásia e 334 no hospital da Universidade do Novo México. As vítimas da Malásia não receberam nenhuma imobilização da coluna vertebral durante o transporte. Já as do Novo México receberam algum tipo de estabilização. Eles perceberam que havia menos deficiências neurológicas sustentadas nos pacientes da Malásia que não foram submetidos à estabilização da coluna vertebral e concluíram que havia menos de 2% de chance de que a estabilização da coluna tivesse algum efeito benéfico nos resultados neurológicos em pacientes com TRM contundente.

Já em 2010, Haut et al. publicaram um estudo baseado em uma análise retrospectiva de pacientes com trauma penetrante no US American National Trauma Data Bank. Dos 45.000 casos estudados, apenas 30 (ou seja, 0,01%) tiveram lesão medular incompleta e precisaram de fixação cirúrgica da coluna vertebral.


Fazer ou não fazer raio-x em vítima de trauma? O começo do movimento de RMC

Da segunda metade da década de 1960 até o início dos anos 2000, o conhecimento produzido acerca do tema nos orientava a colocar uma vítima de trauma, independentemente da cinemática envolvida, em uma prancha rígida e aplicar um colar cervical e bloqueadores laterais de cabeça (head block) para impedir o agravamento de uma suposta lesão e, consequentemente, reduzir o risco de deterioração neurológica secundária ao trauma. Isso implicava em, na chegada do hospital, uma longa espera para a realização de exames de imagens. Além das iatrogenias (eventos adversos resultantes de má conduta médica) provocadas por tal prática, havia a exposição desnecessária à radiação ionizante (o que é ainda pior em pacientes pediátricos) e, não menos importante, um crescente custo financeiro. 

Pacientes em uso de colar cervical eram, invariavelmente, encaminhados à radiologia sem necessidade, implicando em custos e demora no atendimento. Imagem por: xaverarnau. 

Isso começa a mudar quando pesquisadores americanos, em 1998, conduzem o NEXUS — National Emergency X-Radiography Utilization Study, objetivando criar um algoritmo que fosse capaz de identificar se a vítima tinha alta probabilidade de lesão e, portanto, ser encaminhada para exames de imagem.

A partir disto, a avaliação passou a se dar, segundo o NEXUS, com a análise dos seguintes critérios:

- Dor cervical;

- Intoxicação;

- Nível de consciência;

- Déficit Neurológico Focal;

- Ferimento de distração.

Caso a resposta fosse afirmativa para um destes itens, ela deveria fazer exames radiográficos da coluna.

Pouco tempo depois, em 2002, outro estudo surge, desta vez no Canadá, e cria, também, uma série de critérios — estes, mais conservadores do que o NEXUS — para excluir a necessidade de radiografar um paciente vítima de trauma. Trata-se do CCR Rule.

O CCR divide-se em duas categorias: critérios de alto risco e critérios de baixo risco.

Nos critérios de alto risco, existem três itens:

- Idade superior a 65 anos;

- Parestesia nas extremidades dos membros;

- Mecanismos de lesão perigosos (ex capotamento, ejeção, colisão de veículos superior a 100km/h, compressão axial etc);

Não atendendo a nenhum dos itens acima, deve-se partir para a avaliação dos critérios de baixo risco, sendo cinco:

- A colisão traseira de veículos foi simples?

- O paciente consegue se sentar no departamento de emergência?

- A dor na região médio-posterior do pescoço surgiu tardiamente?

- Há ausência sensibilidade na linha média posterior do pescoço?

- O paciente consegue rodar ativamente o pescoço?

Se, para alguma destas perguntas, a resposta foi não, o paciente tem indicação de RMC.

Posteriormente, profissionais que atuam em serviços de atendimento pré hospitalar móvel pensaram: se ambos os estudos indicam critérios claros e seguros para exclusão de lesão medular, por que não os usar, também, no ambiente pré hospitalar, contribuindo para o bem estar das vítimas e evitar complicações decorrentes do mal uso das técnicas da restrição de movimentos da coluna?

Uma série de protocolos e diretrizes surgem, então, sendo estes adotados por inúmeros serviços em todo mundo, e integrando cursos famosos como o PHTLS e ITLS, por exemplo, ambos focados no atendimento inicial a vítimas politraumatizadas.


O que diz o PHTLS

O livro dedica inúmeras páginas para falar sobre lesão traumática da coluna e, no que diz respeito ao manejo da vítima, faz questão de enfatizar que houve considerável avanço em relação ao tema, abordando, inclusive, quais as possíveis complicações da adoção do colar cervical, prancha rígida e outros dispositivos indiscriminadamente.

O pograma orienta que a suspeita de trauma na coluna deve se dar quando houver:

— Qualquer mecanismo de trauma contuso que produza impacto violento na cabeça, pescoço, tronco ou pelve;

- Incidentes que produzem aceleração súbita, desaceleração brusca e forças de inclinação lateral repentinas ao pescoço ou tronco;

- Qualquer queda de altura, em especial em idosos;

- Ejeção ou queda de qualquer dispositivo de transporte motorizado ou acionado por outro mecanismo de movimentação;

- Qualquer incidente de mergulho em águas rasas.

Uma vez que houver tal suspeita, o PHTLS orienta que o socorrista deve avaliar os pontos abaixo para a tomada de decisão e considerar a RMC quando encontrar:

- Dor e/ou hipersensibilidade na linha média da coluna vertebral;

- Nível de consciência alterado ou intoxicação;

- Paralisia ou sinais e/ou sintomas neurológicos focais;

- Deformidade anatômica da coluna;

- Presença de lesão de distração;

- Incapacidade de comunicação.

Percebe-se, portanto, que o algoritmo adotado pelo PHTLS se baseia no critério NEXUS, naturalmente.

No fluxograma abaixo é possível compreender melhor o algoritmo criado por eles:


Fluxograma para RMC — PHTLS 10ª ed. 

NEXUS ou CCR?

Para identificar qual deles seria o mais indicado — ou se ambos são aceitáveis — um estudo foi realizado entre os anos de 1999 e 2002 em nove departamentos de emergência do Canadá. Os protocolos foram aplicados em 8.283 pacientes e analisados por 394 médicos.

Os critérios de inclusão foram, basicamente:

- Ser maior de 16 anos;

- Ter trauma agudo na cabeça ou pescoço;

- Estar alerta;

- Sinais vitais normais;

- Ter mecanismo perigoso de lesão.

Os de exclusão, por sua vez, foram:

- Ser menor de 16 anos;

- Ter sofrido trauma cervical penetrante;

- Ter paralisia aguda ou doença vertebral conhecida;

- Gestantes.

Dentre todos os dados levantados, que podem ser lidos na discussão do artigo, os autores concluíram que o critério CCR teve uma sensibilidade de 99,4%. Já o NEXUS, de 90,7%. Apesar de ser notada uma diferença entre eles, ambos se mostraram satisfatórios para serem utilizados como critério para tomada de decisão de se restringir ou não uma vítima de trauma.


Protocolos e guidelines de RMC

A partir dos critérios NEXUS e CCR, diversos protocolos e guidelines surgiram, à exemplo das recomendações do PHTLS para RMC, baseadas no NEXUS. Mas existem muitos outros, a saber:

- Guideline Norueguês: algoritmo simples, indica restrição mínima para pacientes hemodinamicamente instáveis e, caso estável, usa os critérios NEXUS para decidir pela RMC completa ou não. Se trauma penetrante isolado, automaticamente a RMC é contra indicada;

- Algoritmo Alemão (MARSHAL): criado em 2016, utiliza o ABCDE do trauma para avaliação do paciente quanto à decisão de RMC, uma vez que, em cada etapa desta avaliação, o profissional de emergência pode encontrar critérios que lhe guiarão para a tomada de decisão. Por exemplo, se durante a avaliação neurológica (letra D) o avaliador encontra sinais de hipertensão intracraniana, a restrição não deverá ser feita com colar cervical e a cabeceira da maca deverá ser elevada à 30º. Baseia-se no critério CCR.

E também: Guideline Sul Africano; Consenso do Reino Unido e Guideline Dinamarquês.


RMC no Brasil

Após ler tudo o que já foi postado até hoje por aqui, você deve se perguntar: RMC é uma realidade no Brasil? Alguém já pratica por aqui?

A reposta é sim!

Várias instituições já adotaram os seus protocolos de RMC, como o SAMU de Belo Horizonte — MG, por exemplo. Neste link é possível conhecer o relato de experiência, publicado em agosto de 2021 na Revista Eletrônica Acervo Saúde, mostrando como foi o processo de construção e implantação de um protocolo de RMC na unidade.

Abaixo é possível conhecer o algoritmo utilizado pelo serviço:

Muitos outros serviços espalhados pelo Brasil vêm se atualizando, ainda que lentamente. 

Conclusão

Evidências robustas mostram que adotar colar cervical e prancha rígida para todas as vítimas de trauma indiscriminadamente não trazem benefícios, além de piorarem o estado geral da mesma. Por outro lado, as atualizações — que não são novas — ainda causam conflitos. Alguns serviços já se adiantaram e atualizaram suas equipes, mas o tema, na grande maioria das unidades, sejam elas intra ou extra hospitalares, não faz parte do dia a dia.

Além dos dispositivos tradicionais, é necessário que os serviços incluam em suas viaturas prancha scoop (tipo colher), maca a vácuo e outros tipos de colares, uma vez que a prancha rígida é preferível quando o transporte é curto.

Quando estamos acostumados com uma conduta por muito tempo, mudar “da água pro vinho” leva tempo e causa incomodo, mas cabe a nós, profissionais da saúde comprometidos com a excelência da assistência, fomentar discussões e auxiliar a gestão na implantação das melhorias.

Faça cursos sobre RMC, informe-se, e discuta com sua equipe as evidências. Mas, lembre-se: enquanto o protocolo da sua unidade não é atualizado, siga o que está em vigor.