O dilema dos torniquetes: salvando vidas ou criando complicações?
Texto originalmente publicado por Carlos Felipe dos Santos em 06/fev/24.
Disponível em https://medium.com/p/8ba260796cc3
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Os torniquetes de extremidades têm ganhado popularidade nos últimos anos, tornando-se quase obrigatórios nos kits de primeiros socorros de entusiastas e profissionais de emergência.
Sua consagração originou-se das experiências militares americana no Iraque e Afeganistão, onde evitaram milhares de mortes por exsanguinação. No entanto, o atual conflito entre Rússia e Ucrânia destaca a necessidade de uma adoção cuidadosa, pois, apesar de salvar vidas, o uso indiscriminado pode resultar em complicações indesejáveis.
A regra é clara
Sua aplicação é fácil e tem indicações claras: amputação traumática ou ferimento cujo preenchimento não foi suficiente para frear a perda sanguínea.
Estatísticas recentes da guerra na Ucrânia revelam, no entando, que cerca de 75% dos soldados ucrânianos que receberam um torniquete de extremidades não se enquadravam nessas indicações de uso, pois as lesões eram superficiais. Isso é completamente aceitável, afinal, não parece razoável perder tempo se fazendo um preenchimento de feridas quando se está sob fogo. Mas é aqui que está o problema.
Desafios de atendimento
O torniquete de extremidades tem uma janela de segurança de aplicação de até 2 horas. Após esse período, há o risco para o desenvolvimento de lesões isquêmicas, as quais incluem mionecrose, rabdomiólise, síndrome compartimental, insuficiência renal, trombose vascular, amputação e, em alguns casos, morte.
Diferentemente das guerras do Iraque e do Afeganistão, a Ucrânia tem tido dois grandes problemas para o tratamento dos soldados feridos: a evacuação até um centro de trauma é demasidamente demorada, levando, por vezes, tempo superior à 6 horas (afinal, não se pode fazê-la por meio de helicópteros, devido o risco áereo na região), e falta de pessoal devidamente treinado para realizar a conversão do tornqiuete de extremidades, bem como o manejo das complicações quado do uso prolongado.
O uso indiscriminado e prolongado de tornqiuete de extremidades na guerra entre Rússia e Ucrânia tem se tornado um grande problema. Imagem: Emile Ducke/The New York Times
Conversão ou reposicionamento do torniquete
Evitar complicações começa com uma avaliação criteriosa e decisão de converter ou reposicionar o torniquete de extremidades o quanto antes, especialmente se a vítima, quando socorrida, já tem instalado o estado de choque. A literatura, porém, não recomenda essa prática caso o tempo de fixação seja superior à 6 horas, dados os riscos associados.
Não sendo uma amputação ou uma grave mutilação que impeça o preenchimento da lesão, o médico ou militar devidamente treinado deve, em primeiro lugar, preencher a cavidade com agente hemostático e proceder com o seu empacotamento. Na sequência, deve-se afrouxar o torniquete e observar, atentamente, se há ressangramento. Não havendo, o torniquete permanece frouxo, mas pronto para uso quando necessário. Agora, se a ferida voltar a sangrar, o torniquete deve ser reposicionado e apertado para cerca de 5–7 cm acima da lesão ou, na impossibilidade, permenecer no local inicialmente fixado.
Manejo das complicações do uso prolongado
Quando a conversão do torniquete não for possível (seja por ressangramento ou por falta de equipe treinada para tal) e a vítima fica com o dispositivo fixado por um tempo prolongado, principalmente quando superior à 6 horas, complicações resultantes da isquemia quando da reperfusão do membro irão surgir.
São algumas delas:
Hipotensão de início rápido: retomada de hemorragia catastrófica; redução da atividade vasopressora mediada pela dor; comprometimento do tônus vasomotor simpático dos membros; sequestro de volume sanguíneo;
Arritmia cardíaca: Hipercalemia; acidose metabólica;
Acidose metabólica: liberação de ácido lático na circulação decorrente da isquemia;
Hipotermia: retorno do sangue em baixa temperatura; membro frio atuando como dissipador de calor contínuo;
Lesão renal aguda: mioglobinúria (causando obstrução dos túbulos renais).
É imprescindível, portanto, que uma adequada estratégia de reperfusão seja bem planejada, o que deve incluir uma equipe bem treinada, estabilização da vítima e recursos materiais disponíveis.
Os drs. Patrick Weinrauch, cirurgião ortopédico do 2º Batalhão de Saúde do Exército Australiano, e Nathan Peters, anestesista do Royal Brisbane and Women’s Hospital, propuseram a seguinte abordagem para reduzir as consequências sistêmicas da reperfusão isquêmica, as quais devem ser iniciadas antes da remoção do torniquete:
ABCDE da reperfusão isquêmica
Alcalose: Criação de alcalose respiratória e metabólica leve por uma combinação de hiperventilação (se ventilada mecanicamente) e infusão intravenosa de bicarbonato de sódio (0,5–1 mmol/kg ou 1 ml/kg de bicarbonato de sódio a 8,4% p/v. A dose típica de adulto de bicarbonato a ser considerado é 1 ampola de 50ml de bicarbonato de sódio a 8,4%), administrado 5–10 minutos antes da liberação do torniquete. Minimizar a acidose metabólica em uma vítima politraumatizada é importante considerando a disfunção cardíaca e a coagulopatia sanguínea. A alcalose urinária, juntamente com um estado de hidratação adequado e uma taxa de débito urinário adequada, reduz o impacto renal da mioglobinúria.
Pressão arterial: A pressão sistólica deve ser adequadamente controlada em antecipação a uma diminuição rápida e potencialmente significativa associada a hemorragia contínua, perda de atividade vasopressora mediada pela dor e sequestro de volume dentro do membro agravado por isquemia nervosa mediada por disfunção vasomotora simpática.
Cálcio: Gluconato de cálcio (10 ml de solução a 10% durante 2–3 minutos IV) para proporcionar um efeito estabilizador cardíaco em consideração à disritmia devido à hipercalemia. Papel associado no tratamento da coagulopatia associada à hemorragia crítica.
Desfibrilação: Pás de desfibrilação aplicadas antes da liberação do torniquete com o carrinho de emergência em espera.
Eletrólitos: O potássio sérico idealmente colocado na faixa normal baixa (aproximadamente 3,5 mmol/L) antes da remoção do torniquete. Considere a infusão de insulina dextrose (10 unidades em 50ml de solução a 50% durante 2–3 minutos IV) para redução ativa nos níveis séricos de potássio.
Eletrocardiografia: Monitoramento eletrocardiográfico contínuo implementado para detecção precoce de arritmia hipercalêmica.
Meio Ambiente: Em antecipação ao comprometimento progressivo do manejo da hipotermia, instituição de monitoramento regular da temperatura (central), controle da temperatura ambiental com dispositivos de aquecimento de ar forçado e aquecimento de fluidos.
Conclusão
O torniquete de extremidades continua sendo crucial na prevenção de mortes evitáveis, mas sua recomendação de uso deve ser consolidada. Equipes de emergência precisam estar capacitadas para avaliações criteriosas, decidindo sobre conversão ou reposicionamento do dispositivo, evitando complicações catastróficas da reperfusão isquêmica, especialmente em cenários de uso prolongado inevitável.
Referências
HOLCOMB, John B. et al. Rethinking limb tourniquet conversion in the prehospital environment. Journal of Trauma and Acute Care Surgery, v. 95, n. 6, p. e54-e60, 2023.
WEINRAUCH, Patrick. Tourniquet Conversion in an Austere Environment. Disponível em: https://cove.army.gov.au/article/tourniquet-conversion-austere-environment. Acesso em: 05 fev. 2024.
Weinrauch, P.; Peters, N. (2023). The Reperfusion Toolbox: How to Resuscitate a Casualty in Preparation for Tourniquet Removal after an Extended Duration of Application. Cove: Connecting the Profession of Arms. Disponível em: https://cove.army.gov.au/article/reperfusion-toolbox. Acesso em 5 fev. 2024.
STEVENS, Rom A. et al. Misuse of Tourniquets in Ukraine may be Costing More Lives and Limbs than they Save. Military Medicine, p. usad503, 2024.