Por que falar sobre controle de hemorragias no ambiente escolar?

Texto originalmente publicado por Carlos Felipe dos Santos em 19/dez/23.
Disponível em https://medium.com/p/a812bf064e88
Tempo de leitura: 6 min.

Quem me acompanha nas redes sociais, em especial, o LinkedIn, sabe que eu venho falando muito, há um bom tempo, sobre controle de hemorragias e a campanha Stop the Bleed, uma iniciativa do Departamento de Defesa Americano e o Colégio Americano de Cirurgiões (vide abaixo).

Em 2023, fui mais incisivo e afirmei: este tema precisa ser abordado dentro das escolas brasileiras. Levei isso tão à sério, que o assunto acabou se tornando o meu TCC — Trabalho de Conclusão de Curso (Controle de hemorragias e educação em saúde: o enfermeiro na construção de comunidades escolares resilientes).

Para que você possa compreender tal necessidade, vou voltar no tempo e te falar sobre uma triste realidade dos Estados Unidos: os eventos com atiradores e acidentes com vítimas em massa.

O país norte americano registra ocorrências do tipo há muito tempo e, somente entre os anos de 2003 e 2013, 185 casos do tipo foram contabilizados, sendo as escolas os principais alvos desses criminosos.

Talvez o evento mais marcante tenha sido o Massacre de Columbine, ocorrido na cidade homônima em 1999, o qual resultou em 13 mortos (sendo 12 alunos e 1 professor) e 21 feridos.

Reportagem exibida em 2019, na RedeTv!, sobre os 20 anos do Massacre de Columbine. Vídeo: YouTube/Notícias RedeTv! 

De lá para cá, foram vários outros, e chamo atenção para dezembro de 2012: Adam Lanza, um jovem de 20 anos, se arma com uma pistola e um rifle (um tipo de arma de fogo de cano longo), mata a sua mãe dentro de casa e, depois, se dirige até a escola Sandy Hook, em Newtown, e mata mais 26 pessoas, das quais 20 eram crianças. 

Adam Lanza, autor do massacre da escola Sandy Hook. Imagem: divulgação. 

No início de 2013, então, diversas autoridades americanas, entre civis e militares, se reúnem para discutir o que poderia ser feito para diminuir o número de mortos nessas ocorrências. Durante os encontros, eles percebem que o padrão de lesão encontrado nessas ocorrências são similares aos dos soldados feridos nas guerras do Iraque e do Afeganistão e, por isso, todo o aprendizado obtido nesses conflitos em relação ao manejo da hemorragia externa grave (o qual inclue o uso de torniquete de extremidades, gazes hemostáticas e ouros mateirias) deveria ser amplamente difundido no ambiente civil, afinal, quando não controlada rapidamente, leva à uma série de complicações potencialmente fatais. Além disso, já estava bem consolidado que o sangramento é a causa número um de morte evitável! 

Surgiu, então, a campanha Stop the Bleed, a qual se espalhou pelo mundo rapidamente, capacitando mais de 2 milhões de pessoas a usarem a ferramenta mais disponível para o sucesso na prestação do primeiro cuidado: as mãos! 

Professores, alunos e demais cidadãos aprendem, em um curso rápido, o comportamento esperado diante de uam lesão sangrante e as técnicas básicas para controlar a perda sanguínea, que são facilmente lembradas pelo mnemônico ABC, onde A = Alertar (acionar o serviço de emergência); B = Bleeding (sangramento, em inglês; localizar o ferimento); e C = Compressão (comprimir o ferimento usando as mãos e um pano limpo, que pode ser a própria camiseta). 

Cartaz, em inglês, sobre os três passos a serem seguidos ao se deparar com uma hemorragia. Imagem: stopthebleed.org 

Cenário brasileiro não é muito diferente

Você provavelmente ainda não entendeu qual a relação do relato acima com o cenário brasileiro, mas eu lhe digo: ataques violentos a escolas brasileiras são registrados desde 2002 e, em 2023, acompanhamos, atônitos, uma explosão dessas ocorrências, a qual vitimou inúmeros jovens e professores. Além disso, dados do Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas mostram que o Brasil é o maior país em número absoluto de homicídios no mundo. 

Ataque ocorrido na Escola Estadual Sapopemba, em São Paulo — SP, em outubro de 2023, foi o 9º registrado no ano no país. Imagem: Taba Benedicto/Estadão Conteúdo. 

Ciente dessa necessidade, eu decidi, então, saber se esse temática está sendo abordada nos cursos de primeiros socorros em escolas, afinal, com a sanção da lei federal nº 13.722 — Lei Lucas em 2018, a capacitação dos profissionais que atuam em escolas públicas e privadas de educação básica e de estabelecimentos de recreação infantil se tornou obrigatória a partir de 2019. 

Para a minha triste surpresa, minha revisão bibliográfica, que retornou 40 resultados (usando as palavras chaves "educação em saúde" e "primeiros socorros" nas bases SciELO, BDENF e MEDLINE), mostrou que poucas escolas estão capacitando seus profissionais. Além disso, dos 9 artigos que se encaixavam no objetivo proposto, apenas 5 foram sobre intervenções práticas. Ainda pior: apenas 3 incluíram controle de hemorragias no conteúdo programático. 

Trauma seguido de hemorragia se faz presente no ambiente escolar

Você leu, agora há pouco, que a hemorragia, quando não controlada rapidamente, pode matar em poucos minutos. Também sabe que, por aqui, nossas escolas estão vulneráveis, afinal, ameaças continuam sendo registradas, conforme reportagem publicada em 3 de dezembro de 2023 no portal Uol. Mas acrescentar uma outra informação para deixar claro, de uma vez por todas, por que precisamos falar sobre: uma pesquisa realizada com 18 participantes durante o ano de 2020 em nove escolas de Divinópolis, cidade da região centro-oeste de Minas Gerais, permitiu concluir que o trauma seguido de hemorragia figura entre as maiores causas de atendimento nos estabelecimentos de ensino, os quais são causados, entre outras razões, pela própria infraestrutura insegura da unidade. Os autores do estudo destacaram, ainda, que apesar de alguns dos participantes mostrarem um certo conhecimento teórico sobre a prestação de primeiros socorros, a capacitação e a habilidade prática necessária para a prestação do primeiro cuidado eram deficitárias. 

Professores não estão preparados

Uma pesquisa realizada em 2019 com 76 profissionais de seis escolas públicas de Cuiabá, no estado do Mato Grosso, revelou que quase a metade deles (35), nunca havia participado de um treinamento de primeiros socorros anteriormente. Dos que declararam ter participado, 12 não atualizavam o conhecimento acerca dos procedimentos há pelo menos 5 anos.

Na pesquisa quase experimental conduzida com profissionais de seis creches comunitárias de uma cidade do interior do estado de Sergipe, apenas 7 dos 134 participantes do questionário pré teste tinham algum conhecimento na prestação do socorro.

Já em Minas Gerais, uma pesquisa conduzida com 125 profissionais de diferentes escolas públicas do estado no ano de 2021 evidenciou que somente 17 declararam se sentir aptos para conduzir a assistência.

Sobre o manejo da hemorragia, especificamente, um estudo de caráter exploratório-quantitativo realizado em uma escola de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, identificou que, dos 30 educadores participantes, quase a metade, ou seja, 46,6% (14) respondeu incorretamente o que deveria ser feito. Sobre o conhecimento dos números do serviço de emergência (SAMU, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar), apenas 13 conheciam os três números (192, 193 e 190, respectivamente), e quatro entrevistados não souberam responder.

Foi possível concluir, portanto, que mesmo com uma lei obrigando a capacitação de profissionais da educação em primeiros socorros, tais oficinas não estão ocorrendo. A falta de regulamentação por parte dos estados e municípios e o próprio desinteresse das autoridades, bem como de uma parcela dos profisisonais, tornam nossas escolas inseguras, ainda mais em um cenário onde a cultura de massacres vem sendo fortemente difundida na internet, representando um enorme desafio para as autoridades, que parece, até agora, não terem acordado.

Portanto, se você é pai, mãe ou responsável por um menor em idade escolar, converse com o gestor da unidade e cobre a capacitação. E você, profissional da saúde, em especial, enfermeiro, faça a sua parte: divulgue essa informação o quanto puder e torne-se um ator na construção de comunidades escolares resilientes.

Em tempo: acesse http://emergencia.site e aprenda, gratuitamente, primeiros socorros para mais de 50 emergências.



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