Abertura de vias aéreas: uso de cânulas são procedimentos básicos ou avançados?
Texto originalmente publicado por Carlos Felipe dos Santos em 21/jan/23.
Disponível em https://medium.com/p/391849656ad2
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Tendo atuado como bombeiro civil por cerca de oito anos, tive de realizar a reciclagem do meu curso (ou requalificação) a cada 12 meses, obedecendo ao disposto nas legislações e normas técnicas pertinentes.
Infelizmente, em cada centro de treinamento que passei, vi equívocos sendo cometidos quando falava-se de alguns procedimentos. Não que a forma de ensinar ou as técnicas/preferências tenham de ser universais, mas o que não se pode é definir conceitos erroneamente e, pior, não ter a capacidade de ouvir alunos, principalmente num curso de requalificação, afinal, estamos ali trocando experiências e atualizando conhecimento.
Num destes treinamentos, ouvi de um enfermeiro que o uso de cânulas (dispositivos para abertura de vias aéreas) no ambiente pré hospitalar é restrito à médicos e enfermeiros. Será mesmo?
Cânula orofaríngea do tipo Guedel. Imagem: divulgação.
O objetivo do profissional de atendimento pré hospitalar é fazer com que a vítima tenha garantida a capacidade de produzir energia por meio do oxigênio (metabolismo aeróbio). Pra isso, temos de obter uma rápida impressão do estado geral dela (por meio de mnemônicos, sendo que cada programa de treinamento adota um), e corrigir possíveis problemas que agravem esta condição.
Pode-se dizer que a segunda etapa (a primeira é corrigir grandes hemorragias, para frear a perda de hemácias — células transportadoras de oxigênio), é garantir que o oxigênio chegue, em quantidade suficiente, aos pulmões. Logo, é definida como controle da cervical com abertura de vias aéreas. Nesta, procura-se garantir que a via aérea esteja aberta e devidamente permeável, corrigindo possíveis obstruções por fluídos como sangue, vômitos ou corpo estranho.
Vítimas com nível de consciência reduzido e que se encontram em decúbito dorsal horizontal — DDH, podem ter obstrução da via aérea pela queda da língua, que bloqueará a hipofaringe, impedindo a passagem de ar. Não é a toa que vítimas sem suspeitas de trauma são colocadas em posição lateral de segurança justamente para evitar tal obstrução.
Existem três métodos para se abrir e manter uma via aérea permeável. A escolha por um destes vai depender da condição/gravidade do paciente, recursos disponíveis e nível de habilidade do socorrista, afinal, quanto mais difícil um procedimento, um maior número de treinamentos será necessário para que ele adquira proficiência na técnica escolhida, além dos riscos de cada procedimento.
O primeiro — e más fácil — método de abertura de via aérea é a manual. Nela, não há a necessidade de se utilizar nenhum equipamento auxiliar. Existem duas manobras manuais que podem ser realizadas, ambas aplicáveis a vítimas de trauma:
Anteriorização da mandíbula: os polegares são posicionados no osso da bochecha e os indicadores e médio no ângulo da mandíbula, que é levantada superiormente.
Técnica de abertura de vias aéreas por meio da anteriorização da mandíbula. Imagem: Blog Wanderson Monteiro
Elevação do mento no trauma: Nesta manobra, mais simples, a mandíbula é movida para a frente, puxando-a pelo queixo. Esta técnica exige dois profissionais para sua execução, e geralmente é utilizada em vítimas que respiram espontaneamente. Cuidado para não colocar os dedos entre os dentes.
Técnica de abertura de vias aéreas por meio da elevação do mento.
Observe que ambas as manobras evitam a movimentação da coluna cervical.
A segunda etapa, simples, envolve o uso de dispositivos para que vítimas inconscientes mantenham a via aérea pérvia e tenham as chances de hipóxia reduzidas. São eles as cânulas orofaríngea e nasofaríngea, sendo esta última contra indicada para vítimas com suspeita de TCE — trauma crânio encefálico. O uso destes equipamentos requer o mínimo de treinamento e apresentam baixo risco de complicações.
A terceira etapa, conhecida como complexa, requer um alto nível de treinamento, mais de uma peça para a sua realização, podem apresentar uma taxa de sucesso reduzida comparada à manobra anterior e ainda apresentam maiores riscos de complicações — intubação orotraqueal ou dispositivos supraglóticos.
Agora, vamos à questão: quem pode utilizar as cânulas? Apresento-lhes três argumentos:
O PHTLS 9ª edição diz que “Os profissionais de atendimento pré hospitalar de nível técnico (suporte básico de vida) terão treinamento para posicionar cânulas orofaríngeas.”
O protocolo de Suporte Básico de Vida do National Safety Council, que visa treinar profissionais de saúde e resgate, também preconiza o uso destes dispositivos para manter as vias aéreas abertas.
Não há resolução das entidades de classe (COREN/COFEN) que restringe o uso destes dispositivos apenas aos enfermeiros.
Em relação às cânulas orofaríngeas, existem dois modelos disponíveis: as de Guedel (mostradas na imagem da capa) e as de Berman, apresentadas abaixo. A diferença básica entre elas é que este último modelo permite a passagem de um tubo de sucção lateralmente a ele devido sua construção.
Cânulas de Berman de diferentes tamanhos. Imagem: divulgação.
Caso a vítima apresente reflexo de vômito, ou seja, esteja inconsciente mas não irresponsiva, ou tenha trauma na mandíbula, deve ser utilizada a cânula nasofaríngea. Esta, por sua vez, é introduzida em uma das narinas também com o intuito de manter a via aérea permeável. É importante ressaltar que, em caso suspeita de fratura de base de crânio, a adoção deste dispositivo é contra indicada.
Cânula nasofaríngea. Imagem: divulgação.
Por curiosidade, deixo este vídeo, onde um instrutor demonstra, em um paciente consciente, como usar a cânula nasofaríngea. Atenção: o uso destes dispositivos não dispensa treinamento.
Vídeo exibindo a técnica para passagem da cânula orofaríngea.