Punção intraóssea na emergência: técnicas e dispositivos
Texto originalmente publicado por Carlos Felipe dos Santos em 25/ago/24.
Disponível em https://medium.com/p/ffc0a356b8ea
Tempo de leitura: 5 min.
Pode parecer estranho, mas você sabia que um paciente, quando em uma emergência, pode receber a droga indicada diretamente no osso e ter sua vida salva rapidamente?
Situações de emergência podem requerer acesso intraósseo para que uma vida seja salva. Imagem: pcdazero/Pixabay.
A punção intraóssea é uma técnica que, ao contrário do que se imagina, não foi desenvolvida recentemente. Descrita pela primeira vez em 1922 por Drinker e colaboradores, foi muito utilizada em departamentos de emergência, principalmente em pacientes pediátricos, a partir dos anos 1940, sendo incorporada também na rotina pré hospitalar.
Em pouco tempo, porém, o seu uso foi sendo abandonado, uma vez que dispositivos como cateteres sobre agulha (conhecidos como Jelco ou Abocath, ambas referências às marcas) facilitaram a obtenção de uma via periférica para administração de medicamentos. A punção intraóssea acabou, então, ficando restrita aos pacientes pediátricos em casos excepcionais.
Cateter sobre agulha, conhecido como Jelco, usado para obtenção de acesso venoso períférico. Imagem: Descarpack.
Mais recentemente, essa técnica voltou a ser amplamente difundida, afinal, pacientes que estão em uma emergência, como traumas envolvendo hemorragias exsanguinantes ou parada cardíaca, por exemplo, podem ter as veias colabadas rapidamente devido o estado de choque, dificultando a obtenção de um acesso venoso periférico.
Como tempo é vida, obter um acesso de forma ágil é fundamental, e a punção intraóssea, por ser uma técnica relativamente fácil, segura e assertiva, garante que a medicação necessária não seja infundida tardiamente e atinja a circulação quase que instantaneamente. Não à toa, diversas recomendações passaram a surgir, como as da American Heart Association, por exemplo, endossando o seu uso após duas tentativas falhas de acesso periférico.
Canal medular
Os ossos longos e planos possuem, em seu interior, uma estrutura chamada de medula óssea, onde são produzidas as células que compõem o sangue. Por ser extremamente vascularizada e rígida (portanto, não colapsável mesmo quando o paciente perde volume), instalar um cateter em seu interior garante que a droga necessária para o tratamento de situação de emergência chegue rapidamente à circulação sistêmica.
Estrutuas presentes nos ossos longos. Imagem: JPFerraro/Wikimedia Commons
Os principais locais para a obtenção de um acesso intraósseo são o úmero, fêmur distal (para o caro de pacientes pediátricos), tíbia proximal e também distal. Existe a possibilidade de usar o esterno, mas este cenário não é muito comum acaba sendo restrito aos ambientes de guerra.
Locais para punção intraóssea. Imagem: Teleflex.
A maior parte das drogas usadas em emergência podem ser infundidas, com exceção dos quimioterápicos, que podem causar danos.
Tanto vítimas inconscientes quanto conscientes podem receber um acesso intraósseo, sendo que estas últimas devem receber lidocaína 2% sem vasoconstritor antes da infusão da droga. Isso porque, apesar da dor durante a perfuração não ser tão alta (algo entre 2–3 em uma escala de 0 à 10), no momento da infusão do líquido as vítimas conscientes relataram dor num valor entre 8–9, conforme dados de um fabricante.
Conhecendo os dispositivos
Existem diversos dispositivos disponíveis no mercado, os quais se dividem em manuais e automáticos. Aqui trataremos apenas dos dispositivos automáticos.
BIG — Bone Injection Gun
Dispositivo no qual uma agulha é impulsionada por uma mola. A profundidade da agulha é regulada de acordo com o sítio de punção desejado, para pacientes adultos. Para os pediátricos, o ajuste deve ser feito de acordo com a faixa etária. É fabricado pela PerSys Medical.
Dispositivo BIG para uso em adultos. Imagem: Persys Medical.
NIO
O dispositivo NIO tem funcionamento similar ao anterior. A diferença está na apresentação, que possui três versões: Infantil (de 0 a 3 anos), sendo este usado através de torção, Pediátrico (3 a 12 anos) e Adulto (12+), sendo estes dois últimos automáticos. É fabricado pela Cath Care.
Dispositivo BIG para uso em adultos. Imagem: Persys Medical.
EZ-IO
Seu nome faz referência à expressão Easy IO, algo como “Intraósseo Fácil”. Diferentemente do modelo anterior, a agulha é inserida por meio de rotações, funcionando como uma furadeira ortopédica. A pistola, de uso único, tem bateria para cerca de 500 punções e led que indica quando a vida útil está próxima do fim, sendo necessário, então, adquirir um novo equipamento.
Existem três agulhas de tamanhos diferentes: a amarela, para uso em adultos, no úmero; a azul, para uso em adultos, na tíbia; rosa, para a tíbia em pacientes pediátricos. Para os casos de punção em tíbia em adultos obesos, a agulha amarela também pode ser uma opção.
EZ-IO, dispositivo do tipo pistola desenvolvido pela Teleflex. Imagen: Teleflex.
Punção intraóssea funciona?
Não são todos os serviços de emergência que possuem estes dispositivos, que não são novos. Logo, quem não está acostumado com tal prática, pode duvidar da sua eficácia ou mesmo viabilidade.
No vídeo abaixo, porém, é possível verificar que, quando a punção é realizada no úmero, por exemplo, a medicação pode atingir a circulação sistêmica em até 3 segundos após a inserção da cânula.
Muitos departamentos de emergência de grandes hospitais brasileiros e diversos serviços de atendimento pré hospitalar já adotam a punção intraóssea como uma alternativa. Mas atenção: apesar de ser uma técnica simples, existem contra indicações e riscos envolvidos. Por isso, o treinamento prévio e a devida habilitação são necessários e, no âmbito da equipe de enfermagem, seu uso é privativo dos enfermeiros (vide mais abaixo).
Contra indicações e complicações
Segundo os fabricantes, a taxa de sucesso na primeira tentativa é de cerca de 97%, e de complicações, de 1%.
Dentre as contra indicações para a obtenção de um acesso intraósseo, estão:
Fraturas ou lesões por esmagamento próximo ao local de acesso;
Condições de fragilidade óssea, como osteogênese imperfeita;
Local do acesso infectado ou com presença de queimaduras;
Mesmo local de tentativa anterior de acesso intraósseo;
Sinais de cirurgia no local da punção;
Anatomia óssea imperfeita.
As principais complicações são: infiltração, infecção, fratura óssea, necrose tecidual, lesão da placa de crescimento, síndrome compartimental, hematomas e, mais raramente, embolia gordurosa. Por isso, o treinamento e a habilitação específica são necessárias.
Habilitação
No âmbito da equipe de enfermagem, a punção intraóssea é um procedimento privativo do enfermeiro, segundo a Resolução Cofen 648/2020. A resolução ressalta, ainda, que o curso deve contemplar uma parte da carga horária para o treinamento presencial, além de ser vedado ao enfermeiro ministrar curso de punção intraóssea a profissionais que não possuem competência legal para executá-los, como Técnicos/Auxiliares de Enfermagem, Bombeiros Militares, Bombeiros Civis, Socorristas, entre outros similares.
Para finalizar, abaixo é possível ver uma obtenção real de acesso intraósseo realizado por um médico em si próprio, demonstrando que o procedimento não é tão doloroso o quanto se imagina. Confira:
Uso real do WZ-IO para obtenção de acesso intraósseo em tíbia proximal. Vídeo: canal Larry B. Mellick, MD.